sexta-feira, 4 de março de 2016

[Entrevista] Antonio Rhoden

Olá, pessoal! Em meados de janeiro publicamos uma resenha de S., o quebra-cabeça literário criado por JJ Abrams e Doug Dorst. E hoje vocês podem conferir uma entrevista com Antonio Rhoden, o designer caligrafista que trabalhou na adaptação do projeto aqui no Brasil. As perguntas foram pensadas pela Gabi, Marina e pela Fran do blog Universo Literário.

Mas antes, vamos conhecê-lo melhor!?

Antonio Rhoden é gaúcho, tem 43 anos e trabalha com produção editorial e design há mais de 15 anos. Atualmente, trabalha na produção gráfica da Revista Piauí e possui uma empresa chamada “Ô de Casa”, responsável por realizar toda a etapa anterior à impressão de um livro, quer seja diagramação, projeto gráfico ou adaptação de projetos originais estrangeiros.
Pela Editora Intrínseca fez títulos bastante conhecidos. Seu primeiro livro foi o best-seller “A menina que Roubava Livros”. Aliás, foi este livro que despertou sua paixão pelas adaptações manuscritas. Antonio também fez “A Culpa é das Estrelas”, “Quem é você Alaska”, “Cidades de Papel” e “O Teorema Katherine”, todos escritos por John Green.
E não para por aí. Os livros da Keri Smith, “Destrua esse diário”, “Termine este livro” e “Isto não é um livro”, além de todas as adaptações da série “Como treinar seu dragão”, e as capas de “Uma Pergunta por Dia”, “Extraordinário”, “A todos os garotos que já amei & PS Ainda te amo”,”A sorte do agora”, “A arte de pedir" e “Filhos de Anansi", foram obras de Antonio.
Para ele, “trata-se de produtos físicos na estante real de uma livraria. E como profissional do livro, é gostoso saber que o produto final vai parar na mão de algum desconhecido e por fim, ser guardado, mas nunca jogado fora”. Antonio conclui afirmando que vale a pena dar uma olhada em como eram as capas originais a fim de comparar com o resultado das versões dele.

Vamos às perguntas.

Constantes & Variáveis: Antonio, como você descobriu essa habilidade para o design e caligrafia? Isso te ajudou a decidir seguir com essa carreira?
Antonio Rhoden: É curioso, porque como carreira é uma atividade muito recente. Mas a habilidade de reproduzir a caligrafia alheia vem mesmo dos tempos de escola, quando eu costumava copiar a "letra" dos colegas por pura diversão – até que numa ocasião uma professora questionou a autenticidade de uma prova e eu tive que escrever algumas palavras no verso da folha para provar que era eu mesmo... (Risos) Como carreira, foi um processo natural, pois sempre estive envolvido com o design ou a produção gráfica, ainda numa época em que todo o trabalho era feito à mão. Isso facilitou muito a transição para o digital, porque são muitas as vezes em que é necessário um grande conhecimento de tratamento e manipulação de imagem também na condição física (desenhos, pinturas, fotografias). Conhecer bem os materiais físicos, como papéis, lápis, canetas e pinceis também ajudam muito. Também tenho passagem por cinema, restauração de papéis e de arquitetura, ou seja, é todo um conhecimento que agrega valor na hora em que preciso decidir sobre como desenvolver esse ou aquele trabalho. E como o projeto do S. ia em várias direções de execução, essa bagagem toda fez muita diferença no final.

CV: Como foi receber o convite da Editora Intrínseca para trabalhar na adaptação de S.? Já tinha conhecimento sobre o projeto?
AR: Embora já sejamos parceiros a um bom tempo nesse tipo de trabalho, saber que uma editora como a Intrínseca pensa em você para realizar um projeto dessa magnitude é um privilégio.

Só fui saber da existência do S. quando a Mariana [Rimoli, editora] me ligou falando de um projeto complexo, e que precisaria me mostrar pessoalmente. Ela me enviou um link com um teaser da edição original, de maneira que cheguei para a reunião com praticamente tudo na cabeça. Quando peguei o exemplar na mão, percebi que aquele não seria um projeto "normal". (Risos)


Imagem: Antonio Rhoden

CV: Antes de S. você já conhecia outros trabalhos de J.J. Abrams?
AR: Não. Sempre acreditei que eu seria uma das únicas pessoas no mundo a não ter assistido nenhum capítulo completo de Lost. Era a única referência que eu tinha dele. Não sou muito fã de séries, pra dizer a verdade. Mas eu tenho uma relação muito direta com a forma de executar o trabalho, então não ligo muito para a badalação ou fama do autor.

CV: Li que você precisou assistir vídeos para ver como os americanos escrevem, como seguram a caneta. Esse hábito, aparentemente sem importância, realmente faz diferença para executar esse trabalho?
AR: Essa é uma história interessante. O maior desafio do S. estava claramente ligado a uma produção insana de material físico, com uso de canetas, papéis etc. Quando vi o vídeo do teaser, notei que havia duas caligrafias distintas, sendo que uma delas (do Eric) eu pensei "beleza, essa eu já matei". O problema seria da Jennifer. Primeiro por ser uma caligrafia feminina e segundo por ter características genuinamente americanas. Dei uma busca em métodos escolares e descobri que o nosso método era ligeiramente diferente e que saber como era o aprendizado deles facilitaria muito o processo com a Jen. Quando comecei a rabiscar as primeiras letras, caiu a ficha: faziam séculos que eu não escrevia nada tão volumoso. A questão da "pega" (o jeito de segurar a caneta) também era relevante, porque era preciso encontrar uma forma confortável que me permitisse reproduzir aquilo com uma certa fluidez durante toda a execução do livro. A "pega" para fazer o Eric era diferente, então eu ficava alternando os dois o tempo inteiro, tal como vozes em tonalidades ou sotaques. Mas eu fiz muito, muito teste com a letra da Jennifer. Comprei um caderno escolar de caligrafia e repeti incansavelmente algumas letras e palavras. Vale lembrar que o português tem outras conexões entre as letras, além dos acentos. Nossas vogais se repetem infinitamente e algumas palavras curtas em inglês são imensas em nossa língua. Cheguei a um ponto que seria possível falsificar uma prova dela também, se fosse feito no inglês. Em português foi mais difícil manter tudo igual por causa dessas características que citei.
Além dessa questão da caneta, tinha outros detalhes importantes a resolver, como a questão do papel que eu usaria para os manuscritos. Depois de alguma pesquisa, encontrei numa folha de seda de 20gr (usada principalmente em sapatarias para forrar sapato!!) a textura ideal e com a transparência necessária que me guiasse pela base já formatada de ONTD (onde eu incluiria as setas, os sublinhados etc.).


Imagem: Antonio Rhoden

CV: Qual foi o trecho do livro ou anexo mais complicado, que necessitou de mais pesquisas para ser feito?
AR: Curiosamente, o anexo que me deu mais trabalho foi o recorte de jornal do obituário do Caldeira. Originalmente ele havia sido feito em um português meio macarrônico, Google Translator, sei lá. A Editora resolveu reescrever os dois trechos, o principal e o que está no verso. Só que os trechos não se casavam e era preciso manter tudo no mesmo lugar e com as mesmas características do jornal envelhecido.

A maioria desses anexos não estavam "editáveis", ou seja, tiveram que ser inicialmente limpos digitalmente para depois receberem os textos adaptados. Para as folhas de xerox, por exemplo, eu desenvolvi uma forma de "gastar" as letras, tal como estavam no original. Já o mapa dos túneis foi feito praticamente de uma única vez, pois eu consegui encontrar um tipo de guardanapo idêntico em um supermercado. Para todos esses casos, uma coisa que conta muito é a experiência, tanto com manipulação digital, quanto manual. Todo o trabalho de adaptação da nossa edição reproduziu fielmente o original. Em algumas edições estrangeiras é possível perceber que algumas coisas foram mantidas em inglês, ao passo que a nossa foi toda feita no detalhe mesmo. Não passou nada (se passou, me contem!!).

Mas sem dúvida nenhuma, a letra da Jennifer foi a que me custou mais horas de pesquisa. Depois disso, minha letra pessoal, que antes era de um garrancho medonho, ficou praticamente legível hoje em dia!

CV: Aconteceu de surgir algum problema na hora de finalizar alguma página com muitas anotações, ou algum anexo? Se sim, qual procedimento foi realizado? E qual foi a sensação?
AR: Na verdade todo o processo foi cuidadosamente estudado antes de começarmos. A minha esposa é diagramadora e foi de extrema importância o fato de mantermos a diagramação do livro "perto" do trabalho de transcrição. Nós conseguimos visualizar todo o escopo da produção desde o início, e essa visão se mostrou essencial na reta final. Quando começamos a aplicar os manuscritos sobre as páginas diagramadas, deu para perceber a magnitude de todo o trabalho, desde a tradução, passando pela revisão e diagramação. Era como se tivéssemos montado um grande cenário para uma peça de teatro, em que as partes só foram se encaixar no palco. Não tínhamos tempo para erros nessa fase e no fim tudo isso funcionou como um relógio.

CV: Grande parte do seu trabalho foi transcrever as conversas de Jen e Eric nas margens, e vi você falar que era como uma brincadeira de interpretar dois personagens. No fim de um dia inteiro de trabalho isso permanecia em sua cabeça ou era fácil se desligar?
AR: Não, era difícil mesmo. É um trabalho muito incomum. Eu comparo com a atuação justamente porque tem um envolvimento emocional. Escrever sobre os medos e as angústias tem um sentido diferente de quando se lê. Ao mesmo tempo que é um escrever no sentido mais literal possível, praticamente assumindo aquele temperamento, ainda que de forma involuntária. Tinha um outro elemento curioso, que era a passagem do tempo entre eles e que por vezes, aquele diálogo não fazia o menor sentido pra mim. Também tiveram momentos em que eu seguia adiante, mesmo exausto, porque queria saber onde aquilo tudo ia terminar!

CV: Eric ou Jen? Qual personagem você gostou mais de fazer? E qual foi sua parte favorita? Aquela que ao final te deixou com maior satisfação por ter concluído.
AR: É difícil escolher. Eles são muito parecidos, no fim das contas. Mas fazer a Jennifer foi sem dúvida, o maior desafio de todos. Pra você ter uma ideia, eu fiz as cartas muito antes das margens, então não sabia bem como era a história que elas representavam. No caso da Jen, são duas cartas distintas, longas. A carta "branca" foi a primeira que fiz e veja só, nunca ficava satisfeito com ela até que, já no "apagar das luzes" pedi para as editoras revisarem novamente, porque eu quis refazê-la integralmente uma segunda vez. Só então fiquei tranquilo com aquela peça.

Gosto muito do resultado da carta do Eric, em folhas amarelas. Também gosto muito da carta do Desjardin, que foi uma terceira caligrafia (a quarta é da Ermelinda Pega). O resultado impresso ficou bacana e foi a primeira peça que peguei quanto o livro chegou da China.


Imagem: Antonio Rhoden

CV: Ao que tudo indica, o Brasil foi o único país a ter esse trabalho realizado por uma única pessoa. Como você se sente com isso?
AR: A razão mais importante pela qual isso aconteceu, é a extrema confiança que a Intrínseca tem no meu trabalho. Quando disse que daria conta sozinho da execução das peças e dos manuscritos, em momento algum fui questionado ou tive essa decisão posta em dúvida. Todo o trabalho editorial que foi realizado antes me deu possibilidade de trabalhar "sozinho". Todos os anexos foram feitos na primeira etapa, durante a diagramação e revisão de ONDT e quando comecei a fazer os manuscritos, essas peças já estavam prontas. Essa montagem do cronograma também facilitou esse trabalho "solo". Como processo de trabalho, eu visualizei mentalmente toda a execução e fui eliminando os que considerei mais fáceis, focando nos mais complexos. Isso me permitiu decidir se teria condições de fazer tudo sozinho ou se necessitaria ter algum tipo de assistência, o qual cheguei mesmo a cogitar, pois havia uma demanda na preparação do material para os manuscritos.

CV: De que forma S. contribuiu para a sua carreira profissional?
AR: Bem, de certa forma deu visibilidade para um tipo de trabalho que é bastante incomum no mercado editorial. O produto S., além dessa parte dos manuscritos e tal, possui um arsenal de recursos gráficos que normalmente só se vê em peças distintas. Em S. nós temos facas, cores especiais, papéis de diferentes tipos, relevo, verniz, textura, capa dura. Sem contar que é um livro impresso 100% em cores, ou 4/4 como dizemos no jargão gráfico. Eu diria que além de uma peça de literatura, é uma peça para ser estudada em sala de aula de produção gráfica! Poder lidar com todas essas coisas juntas numa única peça é uma aventura e tanto, também. É o sonho de muito designer, embora nós, aqui no Brasil, só tenhamos tido a oportunidade porque a Melcher Media fez todo esse trabalho para nós.

CV: Você se considera um apaixonado por literatura? Se sim, você diria que S. te impressionou mais como livro ou pela parte gráfica?
AR: Eu tenho, com minha empresa, uma bagagem que ultrapassa mil livros produzidos para o mercado editorial brasileiro. Infelizmente, tenho bem menos tempo que eu gostaria para ler alguns desses títulos. Normalmente, antes que um projeto fique pronto, já estamos trabalhando em um outro, então é difícil ter apego por esse ou por aquele. S. é uma obra completa, em todos os sentidos. É um raro presente que a Intrínseca deu aos leitores brasileiros justamente por toda a complexidade que gira em torno dele, e que não seria possível de realizar se não houvesse paixão de todos os envolvidos. É um presente para os leitores, mas também para todos os profissionais que trabalharam nele, um motivo de orgulho mesmo.

CV: Que recado você gostaria de deixar para nossos leitores que pretendem seguir a mesma carreira?
AR: Não abandonem o analógico, o papel, as tintas, as canetas. Eu sempre digo aos mais jovens que não deixem de rabiscar seus trabalhos antes de levar para o computador. Tenho 3 filhos e sempre os incentivo a pintar, desenhar, escrever cartas. Claro que não é essencial para quem quer entrar no mercado, mas é um diferencial.

CV: Ser designer é...
AR: ...ver o mundo de uma maneira diferenciada, combinando cores, funções e formas em todas as coisas que nos cercam. É pesquisar 2 horas pela fonte ideal e usar Helvética e dizer "era isso que eu queria!" (Risos), ou então entrar numa loja de camisetas e dizer "vou levar dessa cor, 100% de amarelo e 30% de magenta". A gente tem vários clichês divertidos, faz parte.


Imagem: Antonio Rhoden

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Agora que você conhece um pouco do trabalho do Antonio e como ele o executa pode fazer uma pesquisa a fim de comparar suas adaptações com os originais. E possivelmente, reconhecê-los na próxima visita à livraria.

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